quinta-feira, 22 de maio de 2008

Religião e Desequilíbrio Social

Sigo colhendo os frutos de ter assistido o filme Le Notti di Cabiria. O filme se desenrola em meados dos anos 50 na Itália. O país então destruído pela guerra tenta se reerguer sobre novas bases. Em uma cena marcante Cabiria se perde após ter “trabalhado” à noite e acaba chegando próximo às cavernas. Nestas, meros buracos no chão rochoso, vivem pessoas sem condições de viver em outro lugar. Lá ela encontra um homem misterioso que chega de carro e anda com uma mochila imensa presa às costas. Logo após ela descobre que ele está levando comida aos pobres.

A questão principal é que solidariedade é uma coisa totalmente desconhecida para ela, que levou uma vida sofrida e solitária. Tudo que ela recebeu das pessoas que conheceu foi o pior possível, desamparo, desafeto e exploração. Ela fica encantada pois talvez tenha sido a primeira demonstração de bondade desinteressada que ela conheceu na vida.

Adiante na história ocorre uma procissão onde todos os seus conhecidos vão fazer pedidos à “Maddona” (não sei precisar exatamente qual delas). Nestas cenas ela toma contato com a devoção do povo. As cenas são muito focadas nos rostos das pessoas que demonstram sua inabalável fé nos milagres da Santa.

A leitura que faço destes fatos é de que o papel das igrejas tem sido puramente explorar a devoção das pessoas que se acotovelam nas procissões em busca de graças. Promover a justiça social tem ficado em segundo plano. As congregações, de fato, têm seus missionários espalhados pelo mundo, tentando aliviar o sofrimento de alguns, reequilibrando a balança social. Entretanto este papel cabe a alguns poucos abnegados que direcionam a sua vida à caridade (e são confortavelmente mantidos afastados das administrações). Muitas das tarefas sociais atribuídas às igrejas acabam sendo feitas por pessoas que se dispõem a se doar mesmo não tendo ligações religiosas. Estas pessoas compõem uma importante parte da reserva moral da nossa sociedade, chegando a extremos simplesmente para ajudar o próximo sem espera de reconhecimento ou láureas.

Penso eu que corroborando a minha teoria, no seguimento do filme ela encontra um irmão maltrapilho que pede esmola, a qual ela não tem para dar. Ele lhe fala de fé, esperança e de pedir ajuda aos santos que tudo ficará bem. Quando as coisas parecem melhorar ela tenta se confessar com o irmão e dizer como foram bons os seus conselhos e descobre que ele não é um irmão ordenado. Acho que a intenção de Fellini ao colocar essas seqüências foi mostrar que aqueles que, de fato, agem dentro das igrejas, são justamente aqueles que se despem de toda arrogância intelectual e partem para o trabalho pesado, sendo eles próprios desamparados pela instituição.

Não estou aqui discutindo o papel das igrejas, mas sim a sua hierarquia, forma de administração e cumprimento de seus objetivos. No filme se trata da igreja católica em seu reduto mais importante - visto que o filme se passa em Roma – mas acredito que a mesma análise possa ser feita sobre muitas das seitas e religiões que se denominam cristãs. Curiosamente tudo o que Cristo pregou sempre foi a solidariedade.

Não estou dizendo que todos deveriam despir-se completamente e doar tudo aos pobres. Mas se tivéssemos mais pessoas, religiosas ou não, dispostas a fazer com que a balança social não ficasse tão desequilibrada, talvez muitas das suas preocupações com, por exemplo, segurança, fossem resolvidas. A questão em vez de solidariedade, passaria a ser de interesse pessoal. Se as pessoas que tanto reclamam de falta de segurança começassem a se dar conta de que sendo solidárias estariam se beneficiando, talvez conseguíssemos construir uma sociedade mais justa. Seria o caso legítimo de escrever certo por linhas tortas, mas ao menos funcionaria.

Eu sei que tudo isso é uma utopia, mas não custa sonhar, quem sabe um pouquinho deste sonho se realize. Basta que cada um faça a sua parte.

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