Sempre gostei de fazer uma reflexão com meus alunos a partir de uma frase de Nelson Rodrigues, que dizia: “Liberdade é melhor que pão”. A partir da frase começava a refletir sobre as maravilhas do pensamento livre, dando um gancho nas histórias entre ciência e inquisição, culminando com o uso da liberdade com responsabilidade, aplicável diretamente às suas vidas.
É muito fácil falar a respeito desses assuntos, confortavelmente sentado numa poltrona assistindo tudo acontecer. Pois estava eu em tal poltrona quando assisti em um noticiário a uma reportagem sobre a atual situação da Rússia. A concentração de renda, após a queda do muro chega a níveis alarmantes. Há mais de 20 milhões de russos abaixo da linha de pobreza. Um homem que revirava um lixão em busca de comida ao ser entrevistado falou a frase que me lançou em meditação no sábado à noite: “Eu preferia que voltasse o comunismo; não tínhamos liberdade, mas ninguém morria de fome”. Tomei o tapa e fui-me ao meu passatempo predileto, me recolhi para pensar.
Como posso analisar decentemente a frase do Nelson Rodrigues sem saber o que é estar sem liberdade, sem saber o que é estar sem comida? Será que ele próprio soube o que é isso? É claro que se pode argumentar que não precisamos passar por todas as experiências da vida para falar a respeito de muitas delas. Entretanto sobre algumas coisas não creio que seja legítimo comentar sem que se tenha de fato experimentado. Fome é uma delas. O que será um homem capaz de fazer quando não tem o que comer e a esperança de obter algo para o seu sustento se esvai? Não falo de passar fome numa dieta, eu digo fome a ponto de correr risco de morrer e não ter onde buscar comida. Talvez eu nunca sinta na pele (sinceramente, torço para isso) o que é sentir fome, então tenho que buscar na história alguém que tenha sentido e relatado.
Não sou propriamente um expert no assunto mas pelo que lembro um jovem príncipe indiano resolveu peregrinar de mãos vazias, indo ao limiar da vida pela fome, sofrendo uma transformação e iluminação. Buda começou a ensinar após uma experiência extrema de fome. Jesus Cristo teria passado 40 dias do deserto sofrendo tentações antes de começar sua peregrinação e pregação. Uma de suas tentações foi a de usar seus poderes para afastar a fome intensa que sofria. Temos ai dois bons exemplos de coisas que aconteceram com personagens iluminados da história. Mas e o homem comum? Aquele cuja vida desgraçada não deu a oportunidade de moldar o caráter, de dar força ao espírito?
Talvez agora eu tenha chegado a minha resposta. O homem vive sem liberdade, mas sem comida, não. Ele arrisca sua vida e sua liberdade por comida. O homem só mostra a sua real face e o quanto tem firmes seus valores quando sua vida é levada a extremos. Quando a vida é posta em risco entra em ação o homem em sua forma mais crua, sem máscaras. Nesse estado ele é capaz de tudo pelo simples instinto de sobrevivência (lembram-se queda do avião nos Andes que provocou canibalismo por sobrevivência?).
Creio que isso tudo sirva para invalidar a frase que dá título a esse post, o que não tira, ainda assim, a utilidade dela como reflexão para a vida cotidiana daqueles que tem condições de ler o que agora escrevo (desde que devidamente contextualizada). Ter liberdade e dar liberdade é uma coisa fundamental em todos os ramos das atividades e sentimentos humanos. O ser humano só pode se encontrar se tiver liberdade para viver e fazer o seu caminho. O que cada um faz com essa liberdade é o que nos faz diferir em muitas coisas. Sem ela não creio que haja desenvolvimento completo das nossas capacidades intelectuais, afetivas e espirituais. Mesmo sem ela pode haver vida mas num sentido muito mais restrito. O que me faria reescrever a frase: “Liberdade, com pão, é melhor”.
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